Entenda o conflito que já deixou mais de 400 mortos no Sudão
Entenda o conflito que já deixou mais de 400 mortos no Sudão
Em meio a processo para transição democrática após o golpe de 2021, confrontos entre forças do governo e paramilitares deixam centenas de mortos e expõem racha entre dois líderes militares: Burhan e Hemedti.
Por Deutsche Welle 23/04/2023 17h34 - Atualizado há 16 horas
A violência
que tomou conta do Sudão já deixou ao menos 413 mortos e 3.551 feridos, afirmou
a Organização Mundial da Saúde (OMS) na sexta-feira (21/04). Os confrontos
entre paramilitares e forças do governo eclodiram nas ruas da capital, Cartum,
em 16 de abril e se estenderam por outras regiões do país africano.
Os combates
começaram após meses de tensões entre dois líderes militares rivais. As Forças
Armadas do Sudão, sob o comando do general Abdel Fatah al-Burhan, e unidades
paramilitares das Forças de Apoio Rápido (FAR), chefiadas pelo vice-presidente
do Conselho Soberano, Mohamed Hamdan Dagalo, conhecido como Hemedti, trocaram
acusações de provocar o conflito.
“Tanto
instalações militares quanto as da FAR ficam no meio da cidade. Então, essa
luta pelo poder está sendo travada aqui também, em bairros residenciais, onde
as pessoas normalmente iriam fazer compras ou para a escola. Em todos os
lugares, se ouvem as batalhas, e durante o dia inteiro”, conta a residente
da capital sudanesa e diretora do escritório da Fundação Friedrich-Ebert em
Cartum, Christine Roehrs.
Confira os
principais pontos para entender o conflito:
Quem é
Burhan?
O general
Abdel Fatah al-Burhan é de fato o líder do país africano. Ele se tornou um nome
conhecido em 2019, depois que o Exército derrubou o autocrata de longa data
Omar al-Bashir, após meses de protestos em massa.
Antigo
aliado de Bashir e comandante militar que liderou campanhas criminosas no
conflito de Darfur (2003-2008), Burhan mudou de lado com a queda do autocrata
em 2019. Ele presidiu o Conselho Militar de Transição, órgão criado para
supervisionar a transição do Sudão para o regime democrático, e se tornou
presidente interino do país.
No entanto,
com o prazo para entregar o poder a governantes civis se aproximando, em
outubro de 2021, Burhan deu um golpe, derrubando o primeiro-ministro civil
Abdalla Hamdok e acabando com a transição democrática.
Desde então,
Burhan reforçou seu controle sobre o país, apesar de constantes protestos e de
um acordo de dezembro de 2022 para abrir caminho para um governo de transição
civil.
Quem é
Hemedti?
Mohamed
Hamdan Dagalo, conhecido como Hemedti, desfruta de forte posição desde que
Bashir assumiu o poder. Vindo de uma família de pastores de camelos distante da
capital, ele subiu na hierarquia para se tornar líder da notória milícia
Yanyawid, que deu origem às FAR e é acusada de cometer crimes contra a
humanidade durante o conflito de Darfur.
O conflito
em Darfur eclodiu quando rebeldes de minorias étnicas locais lançaram uma
insurgência em 2003, alegando opressão do governo de Cartum, dominado por
árabes. Estima-se que até 300 mil pessoas tenham sido mortas e 2,7 milhões
expulsas de suas casas em Darfur ao longo dos anos, segundo a ONU.
A milícia
Yanyawid lutou ao lado das forças de Bashir contra os rebeldes no conflito.
Embora não tivesse treinamento militar formal, Hemedti conseguiu conquistar uma
posição na máquina de segurança de Bashir. Ele 2013, ele assumiu a liderança do
grupo paramilitar recém-formado FAR, que surgiu da Yanyawid.
Com
frequência, Bashir contava com o grupo paramilitar para reprimir os protestos e
o descontentamento que levaram à sua queda. À medida que as FAR cresciam e se
fortaleciam, crescia a preocupação de que o grupo estivesse se tornando mais
poderoso do que as forças de segurança oficiais do Sudão.
Em 2017, o
país aprovou uma lei que reconheceu as FAR como uma força de segurança
independente.
Como Burhan,
Hemedti passou para o lado vencedor após a queda de Bashir. Relatos sobre ele
especulando o papel de presidente se espalharam depois dele ter se tornado o
vice-líder do Conselho Militar de Transição.
Em junho de
2019, uma repressão mortal num acampamento de protestos em Cartum deixou mais
de 100 mortos. A ação foi atribuída às FAR. Apesar disso, a posição de Hemedti
só se fortaleceu. Seus anos à frente das FAR também o levaram a acumular
aliados na Rússia e no Golfo, onde o grupo paramilitar foi enviado para lutar
ao lado da coalizão liderada pela Arábia Saudita no Iêmen.
Burhan
contou com as FAR para reprimir os protestos após o golpe de 2021. O líder
paramilitar, porém, desapareceu dos holofotes na época, deixando Burhan ser o
rosto do golpe. Hemedti foi então nomeado chefe adjunto do Conselho Soberano do
governo, sendo efetivamente o número dois de Burhan.
Como
eclodiu o atual conflito?
O atual
conflito foi desencadeado devido às negociações de uma reforma do setor de
segurança. Desde que as forças militares e representantes civis assinaram em
dezembro um acordo de transição, estão em andamento negociações para integrar
as FAR ao Exército sudanês. Essa integração poderia significar a perda de
influência de paramilitares.
Analistas
acreditam que Hemedti, cujo grupo paramilitar é estimado em 100 mil homens, não
seria a favor da reestruturação. Em fevereiro, num discurso que chamou o golpe
de “erro”, Hemedti descreveu a ação como a “porta de entrada
para o antigo regime”. O discurso televisionado ocorreu em meio às
crescentes tensões sobre a reestruturação militar, que descarrilhou o retorno
ao regime civil.
Uma semana
antes do discurso, Burhan disse que não toleraria as FAR operando de forma
independente, enfatizando a importância da fusão do grupo paramilitar com o
Exército. Em resposta, Hemedti disse que “representantes do antigo
regime” queriam “provocar uma cisão” entre as FAR e as forças
armadas.
Segundo
Christine Roehrs, da Fundação Friedrich-Ebert em Cartum, a aliança entre os
dois rivais nunca foi estável. “Quando eles tinham interesses em comum,
eles trabalhavam juntos, como no golpe conjunto contra o então governo
interino, em outubro de 2021. Agora, porém, os interesses divergem sobre as
futuras relações entre Exército e milícias, e os ex-parceiros se tornaram
adversários”, explica a especialista.
Apesar da
atual rivalidade explícita, a presidente do Fórum do Sudão e Sudão do Sul,
Marina Peter, acrescenta que Burhan e Hemedti continuam mutuamente ligados pelo
medo de serem responsabilizados por suas ações. “Ambos têm um passado
militar, ambos são filhos adotivos de Bashir, embora de formas diferentes.”
Peter
destaca que grande parte da sociedade civil exige que os dois sejam
responsabilidades por violações cometidas: “Hemedti pelos crimes cometidos
em Darfur, e Burhan por aqueles cometidos durante a revolta de 2019 contra
Bashir. Ambos têm medo disso.”
Adiamento
da transição democrática
A assinatura
de um acordo para nomear um governo civil estava marcada para o início de
abril, mas foi indefinidamente adiada no último minuto. O acordo era
considerado vital para permitir eleições que trariam a liderança civil de volta
ao comando do país, depois de anos de turbulência.
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Em meados de
abril, dias antes de o conflito eclodir, o Exército sudanês havia alertado que
o país atravessava uma “conjuntura perigosa” que poderia levar a um
conflito armado depois que unidades das FAR, o grupo paramilitar mais poderoso
do Sudão, “se mobilizaram” em Cartum e em outras cidades. As FAR
deslocaram tropas para perto da cidade de Merowe, localizada 330 quilômetros ao
norte de Cartum.
Depois que
os confrontos eclodiram em 16 de abril, Hemedti e Burhan trocaram acusações de
tentativas de golpe.
Para além
de interesses políticos
Interesses
econômicos também podem estar por trás do atual conflito, ou seja, também
estaria em jogo o controle de recursos minerais. O Sudão possui consideráveis
reservas de ouro, que interessam à Rússia.
Em 2017, o
então ditador Bashir afirmou num encontro com o presidente russo, Vladimir
Putin, que o Sudão poderia ser “a chave da África” para a Rússia. Na
época, a russa M-Invest – uma empresa de fachada do Grupo Wagner, segundo o
Departamento do Tesouro dos EUA – recebeu o direito de exploração de minas
sudanesas. Atualmente, essas minas são exploradas pela M-Invest em parceira com
as FAR.
Outros países
também têm interesse no Sudão. O Egito aposta num governo estendido de Burhan
e, por isso, o apoia, afirma Marina Peter. No início de abril, os dois países
chegaram a realizar um exercício militar conjunto. O Cairo presta ainda
assistência humanitária no Sudão, por exemplo, durante as enchentes que
ocorreram no ano passado.
Já Hemedti
possui boas relações com a Eritreia, Etiópia e Iêmen, onde milícias sob seu
comando atuaram. Devido à exploração do ouro em parceria com a Rússia, ele
possui ligações próximas com Moscou.
Impotência
da sociedade civil
Segundo
Christine Roehrs, tanto Burhan quanto Hemedti lutam atualmente por poder e
influência. “Eles travam essa batalha pelas costas dos civis, e embora
ambos saibam que milhões de sudaneses se colocaram contra um regime militar e a
favor da democracia já na revolução de 2018”, pontua.
Por esse
motivo, Peter afirma que não se pode falar de uma guerra civil iminente.
“Isso não é de forma alguma uma guerra civil, mas uma luta pelo poder
entre dois atores. A sociedade civil sempre continuou tentando impor reformas
democráticas”, afirma, acrescentando que ativistas pela democracia sempre
viram as milícias e os militares como obstáculo à paz e à mudança de governo.