MPF vê tentativa do governo Bolsonaro de tratar joias como bem privado do ex-presidente
MPF vê tentativa do governo Bolsonaro de tratar joias como bem privado do ex-presidente
Análise do depoimento do chefe de setor de presentes aponta 'desvirtuamento' do procedimento burocrático necessário para recebimento de itens destinados à Presidência, 'facilitando eventual incorporação privada do bem', segundo o Ministério Público Federal.
Por Bruno Tavares e Isabel Seta, TV Globo e g1 — São Paulo 17/05/2023 05h03 - Atualizado há 6 horas
O Ministério
Público Federal apontou que o governo de Jair Bolsonaro tentou incorporar as
joias sauditas como um bem privado do ex-presidente –e não como acervo público
presidencial.
A informação está em ofício de 24 de abril assinado pela procuradora Gabriela Hossri, do MPF em Guarulhos. No documento, a procuradora defende à Justiça Federal a necessidade de busca e apreensão na casa de Marcelo da Silva Vieira, capitão da corveta da reserva da Marinha que, no governo Bolsonaro, era chefe do Gabinete Adjunto de Documentação Histórica da Presidência da República (GADH), responsável por receber e encaminhar presentes destinados ao presidente. A PF apreendeu o celular de Vieira em 12 de maio.
O MPF e a PF
investigam a entrada irregular no Brasil do conjunto milionário de joias, que
seriam presentes do governo da Arábia Saudita. Os itens de luxo estavam com uma
comitiva do governo que visitou o país do Oriente Médio e foram retidos pela
Receita Federal no Aeroporto Internacional de Guarulhos, em São Paulo, em
outubro de 2021.
Nos últimos
dias de dezembro de 2022, o tenente-coronel Mauro Cid, então braço direito de
Bolsonaro na condição de chefe da Ajudância de Ordens da Presidência da República,
tentou obter a liberação das joias junto à Receita e acionou funcionários,
entre eles Vieira, para realizar os trâmites burocráticos para recebimento dos
itens.
“Trata-se
de processo que se iniciou com resultado definido, deixando hialina [transparente]
a utilização do processo administrativo no âmbito do setor chefiado por Marcelo
Vieira apenas como forma de legitimar a incorporação privada do bem”,
escreveu a procuradora no ofício à Justiça.
O processo
administrativo citado teria sido abordado por Cid em 28 de dezembro em uma
ligação telefônica com Vieira.
À PF, o
ex-chefe do setor de presentes disse que, em um telefonema, Cid informou que,
no dia seguinte, 29 de dezembro, chegariam presentes destinados ao presidente
da República e que ele, Cid, encaminharia informações “por meio eletrônico,
inclusive o formulário de encaminhamento, e respectivas fotos, para que fossem
tratados pelo GADH, pois o presente físico seria entregue ao seu titular” –
nesse caso, o presidente da República.
A partir
desse trecho do depoimento, a procuradora afirma que é possível inferir que
Marcelo Vieira teria concordado com “o desvirtuamento do procedimento de
análise do presente no seu setor, facilitando eventual incorporação privada do
bem”.
Isso porque
não cabia à Ajudância de Ordens, sob o comando de Cid à época, definir que o
presente já iria diretamente para o presidente — “e que o GADH receberia
apenas os documentos com fotos do objeto”, como destaca o MPF.
A atribuição
de definir se um presente destinado ao presidente seria tratado como item
público ou privado era do GADH, então chefiado por Vieira.
Conforme
apontado pela investigação, o trâmite burocrático necessário para o
encaminhamento das joias teve início antes mesmo do recebimento dos itens, mas
não foi finalizado, porque o corpo técnico da Receita negou liberar o conjunto
retido na alfândega.
À PF, Mauro
Cid, por sua vez, afirmou que, em dezembro de 2022, Bolsonaro lhe informou
sobre um presente retido pela Receita e pediu que checasse se era possível regularizar
os itens.
O g1
procurou a defesa de Mauro Cid, que não se manifestou até a última publicação
desta reportagem.
Luiz Eduardo
Kuntz, advogado de Marcelo Vieira, afirma que seu cliente “é um exemplo na
história do Departamento [Gabinete Adjunto de Documentação Histórica da
Presidência da República], que “fez um trabalho incrível e está sofrendo,
como vítima de efeito colateral, por uma explícita perseguição ao ex-presidente
[Bolsonaro].” Afirma ainda que o entendimento do MPF “desconsidera
por completo a legislação relacionada aos bens privados de interesse público
(presentes) e os trâmites legais da receita federal e da União no tocante aos
bens que sofrem perdimento e tem previsão legal de serem integrados ao gabinete
da Presidência, respeitado o acervo histórico”.
A defesa do
ex-presidente Jair Bolsonaro não se manifestou. Em abril, o advogado Paulo
Amador da Cunha Bueno afirmou ao g1: “A defesa do ex-presidente Jair
Bolsonaro reitera que jamais houve algum pedido ou determinação, a qualquer agente
público, para que tomasse alguma atitude além dos estritos limites legais.
Reitera, ademais disso, que a destinação de todos os presentes recebidos — à
exemplo do que ocorreu em absolutamente todos governos anteriores —, era
determinada pelo Gabinete Adjunto de Documentação Histórica, órgão em relação
ao qual jamais exerceu qualquer influência ou demanda”.
Marcelo
Vieira investigado
Por causa da
troca de mensagem e contatos com Cid e Bolsonaro, a PF solicitou que Vieira
entregasse seu telefone no dia do depoimento, em 14 de abril.
Na ocasião,
Vieira pediu que o aparelho fosse entregue depois. A polícia aceitou, mas foi
surpreendida quando, no dia 18 de abril, a defesa enviou apenas prints da
conversa com Cid.
A PF, então,
pediu à Justiça a expedição de um mandado de busca e apreensão no endereço de
Marcelo Vieira para apreender o celular de Vieira. Os policiais solicitaram
também a quebra do sigilo telefônico e telemático para verificar todo o
conteúdo das trocas entre Vieira e Cid. O Ministério Público Federal concordou
com o pedido da PF – e ambas as instâncias passaram a tratar Vieira como
investigado.
No entanto,
a Justiça Federal inicialmente negou o pedido sob o argumento de que as medidas
exigiriam indícios de materialidade e de autoria. O juiz federal substituto
Fernando Mariath Rechia reconheceu indícios de materialidade, mas não de
autoria por parte de Vieira nos fatos investigados.
A Polícia
Federal e o MPF solicitaram, então, que a Justiça reconsiderasse a decisão,
apontando que a exigência de indícios de autoria só deve ser aplicada em casos
de interceptação telefônica e, ainda, que o depoimento de Vieira revela que ele
participou dos fatos investigados.
A Justiça
negou pela segunda vez, apontando a ausência de fatos novos. O Ministério
Público Federal recorreu mais uma vez, obtendo decisão favorável do Tribunal
Regional Federal da 3ª Região (TRF-3), que autorizou e expediu o mandado de
busca e apreensão.