A onda de protestos na Índia após médica ser estuprada e morta em hospital
A onda de protestos na Índia após médica ser estuprada e morta em hospital
O estupro e assassinato de uma médica na Índia chamaram a atenção para a violência contra profissionais de saúde.
Por BBC
Na manhã da
última sexta-feira (09/08), uma médica residente de 31 anos se recolheu para
descansar em uma sala de seminários, após um turno exaustivo em um dos hospitais
mais antigos da Índia.
Foi a última
vez que ela foi vista com vida.
Na manhã
seguinte, seus colegas encontraram seu corpo seminu no palco, com ferimentos
extensos. Mais tarde, a polícia prendeu um voluntário do hospital por conexão
com o que eles dizem ser um caso de estupro e assassinato no Hospital
Universitário RG Kar, uma instituição de 138 anos, na cidade de Calcutá.
Dezenas de
milhares de mulheres em Calcutá e em todo o Estado de Bengala Ocidental devem
participar de uma passeata à meia-noite desta quarta-feira (14/8), exigindo
“independência para viver em liberdade e sem medo”.
A marcha
acontece na véspera do Dia da Independência da Índia, celebrado nesta
quinta-feira (15/8). Médicos indignados entraram em greve na cidade e em todo o
país, exigindo uma lei federal rigorosa para protegê-los.
O trágico
incidente voltou a colocar em evidência a violência contra médicos e
enfermeiros no país. Relatos de médicos, independentemente do gênero, sendo
agredidos por pacientes e seus parentes ganharam muita atenção.
As mulheres
— que representam quase 30% dos médicos na Índia e 80% da equipe de enfermagem
— são mais vulneráveis do que seus colegas homens.
O crime no
hospital de Calcutá na semana passada expôs os riscos de segurança alarmantes
enfrentados por equipes médicas em várias unidades públicas de saúde da Índia.
No Hospital
RG Kar, que atende mais de 3,5 mil pacientes diariamente, os médicos residentes
sobrecarregados — alguns trabalham até 36 horas seguidas — não contam com salas
específicas para descanso, forçando-os a repousar em uma sala de seminários no
terceiro andar.
Relatos
indicam que o suspeito preso, um trabalhador voluntário com um passado
conturbado, tinha acesso irrestrito à enfermaria, e sua imagem foi capturada
por câmeras de segurança. A polícia alega que o voluntário não passou por
nenhuma verificação de antecedentes criminais.
“O
hospital sempre foi a nossa primeira casa; só vamos para casa para descansar.
Nunca imaginamos que poderia ser tão inseguro. Agora, depois desse incidente,
estamos apavorados”, diz Madhuparna Nandi, uma médica recém-formada do
Hospital Universitário Nacional de Calcutá, uma instituição de 76 anos.
A própria
jornada de Nandi mostra como as médicas de hospitais públicos da Índia se
resignaram a trabalhar em condições que comprometem sua segurança.
No hospital
em que ela é residente em ginecologia e obstetrícia, não há salas destinadas ao
descanso nem banheiros separados para profissionais do sexo feminino.
“Eu uso
os banheiros dos pacientes ou da equipe de enfermagem se permitirem. Quando
trabalho até tarde, às vezes durmo em um leito de paciente vazio na enfermaria
ou em uma sala de espera apertada com uma cama e uma pia”, conta Nandi.
Ela diz que
se sente insegura até mesmo no quarto em que descansa, após turnos de 24 horas,
que começam com plantão ambulatorial e continuam com rondas na enfermaria e na
maternidade.
Uma noite em
2021, durante o pico da pandemia de covid-19, alguns homens invadiram seu
quarto, e a acordaram, tocando nela e exigindo:
“Levanta,
levanta. Venha ver nossa paciente.”
“Fiquei
completamente abalada com o incidente. Mas nunca imaginamos que chegaria ao
ponto em que uma médica poderia ser estuprada e assassinada dentro do
hospital”, diz Nandi.
O que
aconteceu na última sexta-feira não foi um incidente isolado.
O caso mais
chocante continua sendo o de Aruna Shanbaug, enfermeira de um renomado hospital
de Mumbai, que foi deixada em estado vegetativo permanente após ser estuprada e
estrangulada por um funcionário na enfermaria em 1973. Ela morreu em 2015, após
42 anos em coma.
Mais
recentemente, em Kerala, Vandana Das, uma médica estagiária de 23 anos, foi
morta após ser apunhalada com tesouras cirúrgicas por um paciente bêbado no ano
passado.
Em hospitais
públicos superlotados com acesso irrestrito, os médicos enfrentam com
frequência a fúria de parentes dos pacientes após uma morte ou por exigir
tratamento imediato. A anestesista Kamna Kakkar lembra de um incidente
angustiante durante o turno da noite em uma unidade de terapia intensiva (UTI),
em meio à pandemia de covid-19, em 2021, no hospital em que trabalhava em
Haryana, no norte da Índia.
“Eu era
a única médica na UTI quando três homens, alardeando o nome de um político,
forçaram a entrada, exigindo um medicamento controlado muito procurado. Eu dei
a eles para me proteger, sabendo que a segurança dos meus pacientes estava em
jogo”, recorda Kakkar.
Namrata
Mitra, uma patologista de Calcutá que estudou na Faculdade de Medicina RG Kar,
diz que seu pai, que é médico, costumava acompanhá-la no trabalho porque ela
não se sentia segura.
“Durante
meu plantão, levava meu pai comigo. Todo mundo ria, mas eu tinha que dormir em
um quarto afastado, em um corredor longo e escuro, com um portão de ferro
trancado, que só um profissional de enfermagem poderia abrir se um paciente
chegasse”, escreveu Mitra em uma publicação no Facebook no fim de semana.
“Não
tenho vergonha de admitir que sentia medo. E se alguém da enfermaria — um
funcionário ou até mesmo um paciente — tentasse alguma coisa? Aproveitei o fato
de meu pai ser médico, mas nem todo mundo tem esse privilégio.”
Quando
trabalhava em um centro de saúde público em um distrito de Bengala Ocidental,
Mitra passava as noites em um prédio de um andar caindo aos pedaços que servia
como alojamento para os médicos.
“Quando
anoitecia, um grupo de garotos se reunia ao redor da casa, fazendo comentários
obscenos enquanto entrávamos e saíamos para emergências. Eles nos pediam para
medir sua pressão arterial, como desculpa para nos tocar, e espiavam pelas
janelas quebradas do banheiro”, ela escreveu.
Anos depois,
durante um plantão na emergência de um hospital público, “um grupo de
homens bêbados passou por mim, criando um tumulto, e um deles até me
apalpou”, contou Mitra.
“Quando
tentei reclamar, encontrei os policiais cochilando com suas armas em
punho.”
As coisas
pioraram ao longo dos anos, diz Saraswati Datta Bodhak, farmacêutica de um
hospital público no distrito de Bankura, em Bengala Ocidental.
“Minhas
duas filhas são médicas jovens, e elas me contam que os hospitais universitários
no Estado estão infestados de elementos antissociais e bêbados”, afirma.
Bodhak se
lembra de ter visto um homem com uma arma circulando por um dos principais
hospitais públicos de Calcutá durante uma visita.
A Índia não
tem uma lei federal rigorosa para proteger os profissionais de saúde. Embora 25
Estados tenham algumas leis para prevenir a violência contra eles, as
condenações são “quase inexistentes”, diz RV Asokan, presidente da
Associação Médica Indiana (IMA, na sigla em inglês).
Um
levantamento de 2015 da IMA mostrou que 75% dos médicos na Índia enfrentam
alguma forma de violência no trabalho.
“A segurança nos hospitais é quase inexistente”, afirma.
“Um dos
motivos é que ninguém pensa nos hospitais como zonas de conflito.”
Alguns
Estados, como Haryana, contrataram seguranças particulares para reforçar a segurança
em hospitais públicos.
Em 2022, o
governo federal pediu aos Estados para enviar forças de segurança treinadas
para hospitais sensíveis; instalar câmeras de circuito interno de segurança;
criar equipes de reação rápida; restringir a entrada de “indivíduos
indesejáveis”; e registrar denúncias contra os infratores. Claramente, não
houve grandes avanços.
Mesmo os
médicos que estão protestando não parecem muito esperançosos.
“Nada
vai mudar… A expectativa é que os médicos trabalhem 24 horas por dia e
tolerem o abuso como norma”, diz Mitra. É um pensamento desolador.