CLT faz 80 anos: o que mudou e pode mudar no Brasil da informalidade e aplicativos
CLT faz 80 anos: o que mudou e pode mudar no Brasil da informalidade e aplicativos
Instrumento criado por Getúlio Vargas padronizou direitos como férias e 13º salário. Nos últimos anos, outras formas de contratação ganharam espaço — e especialistas apontam necessidade de adaptações em leis trabalhistas.
Por André Shalders, BBC 01/05/2023 06h24 - Atualizado há 3 horas
No dia 1º de
maio de 2013, o estádio do Vasco da Gama, no Rio de Janeiro, recebeu
autoridades da Justiça do Trabalho, sindicalistas e dirigentes do time para
comemorar o aniversário de 70 anos da Consolidação das Leis do Trabalho, a CLT.
Durante
anos, acreditou-se que Getúlio Vargas (1882-1954) tinha escolhido a arena de
São Januário para assinar o que viria a ser a lei trabalhista mais importante
do país.
Mas não foi
assim: Vargas não esteve no estádio em 1º de maio de 1943. A CLT foi assinada
em um comício no centro do Rio, há exatos 80 anos.
A CLT
continua a ser até hoje a principal lei trabalhista brasileira, abrangendo 42,9
milhões de empregados em março deste ano, segundo dados do Cadastro Geral de
Empregados e Desempregados (Caged) do Ministério do Trabalho.
Nos últimos
anos, porém, perdeu espaço para outras modalidades.
Avançaram a atuação informal, o trabalho por meio de aplicativos e a contratação via empresa individual, a chamada de “pejotização”.
Em fevereiro
deste ano, o número de brasileiros trabalhando sem carteira assinada atingiu o
pico desde que o tema passou a ser parte da Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílios (Pnad) do IBGE – o percentual de informais vem batendo recordes ano
a ano desde 2012, quando a pesquisa começou.
Os celetistas
(trabalhadores com carteira assinada) representam atualmente cerca de um terço
da população ocupada no país, segundo a pesquisa.
Parte da
legislação sobre o tema foi alterada pela reforma trabalhista de 2017,
impulsionada pelo governo do então presidente Michel Temer (MDB).
Agora, a
gestão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) pretende revogar algumas
das mudanças introduzidas pela reforma trabalhista e criar uma nova
regulamentação para os trabalhadores de aplicativos.
Reforma
trabalhista
A reforma
trabalhista de 2017 foi a principal mudança na CLT nos últimos anos,
impulsionada pelo governo Temer.
A reforma
deu maior peso às negociações coletivas entre patrões e empregados, que
passaram a prevalecer sobre a legislação; permitiu a divisão de férias; criou a
figura do trabalho intermitente (modelo no qual o empregado é chamado para
trabalhar em momentos pontuais e recebe apenas pelas horas trabalhadas) e
acabou com a contribuição sindical obrigatória, entre outros pontos.
Uma das
mudanças mais significativas diz respeito aos processos na Justiça do Trabalho:
desde a reforma, o empregado pode ser obrigado a pagar honorários ao advogado
da empresa, em caso de derrota. O valor varia entre 5% e 15% do valor total da
causa.
De acordo
com um estudo de 2022 de economistas da Universidade de São Paulo (USP) e do
Insper, esta mudança pode ter representado um acréscimo de 1,7 milhão de
empregos formais desde 2017. O número foi estimado por meio de um modelo
matemático.
Segundo o
economista Rafael Ferreira, um dos autores do estudo, a possibilidade de ter
que arcar com os custos do processo desincentivou funcionários a entrar na
Justiça, especialmente nos casos em que não há certeza de vitória. O que,
segundo ele, diminuiu os custos das empresas para abrir novas vagas.
“Quando
a empresa contrata, ela tem de levar em conta o custo esperado se demitir o
trabalhador. Se eu reduzo esse custo esperado de contratar, que pode vir de um
processo, tenho mais chance de contratar. Toda empresa faz provisões para os
custos de processos trabalhistas”, diz Ferreira, que é professor do
Departamento de Economia da Universidade de São Paulo (USP).
“A CLT foi criada em 1943 e o mundo mudou de lá para cá. Então era preciso uma atualização importante. Agora, o que eu acho que é bastante importante para as próximas reformas, é o aumento da previsibilidade. Reduzir as incertezas associadas à contratação no país. Há incerteza sobre a interpretação que os juízes podem ter sobre um ponto ou outro de um contrato de trabalho. O que a legislação puder fazer para tornar tudo o mais claro o possível, e reduzir incerteza, deve ser feito”, diz Ferreira.
Avaliar
todos os impactos da reforma não é tarefa simples – ainda restam mais dúvidas
do que certezas sobre como a reforma mudou a economia brasileira e como ela
poderia ser alterada para beneficiar trabalhadores e empresas.
Especialistas
apontam que não basta olhar para dados como a taxa de desemprego e a renda,
antes e depois da reforma, para chegar a alguma conclusão, pois diversos
fatores (como pandemia e crises institucionais) influenciam essas variáveis e
não é possível saber como a economia teria se comportado caso a reforma não
estivesse em vigor.
Mudanças
à vista
Durante a
campanha eleitoral de 2022, os direitos dos trabalhadores foram um dos pontos a
que Lula recorreu como um contraponto ao seu antecessor e adversário, Jair
Bolsonaro (PL).
O petista
enfatizou duas medidas principais para o governo iniciado em janeiro: rever
pontos da reforma de 2017 e regulamentar as profissões exercidas por meio de
aplicativos (especialmente os de entregas e de transporte de passageiros) para
dar maior segurança e mais garantias aos trabalhadores.
Bolsonaro
disse, por sua vez, durante uma viagem à China, que os trabalhadores preferem
perder alguns direitos para ter mais empregos.
Naquele ano,
o governo lançou a chamada Carteira Verde e Amarela, uma iniciativa que reduzia
encargos trabalhistas para empresas que contratassem jovens até 29 anos ou
pessoas acima dos 55 anos. A ideia não vingou e foi abandonada.
Até junho de
2022, a proposta oficial do PT era de “revogação” da reforma
trabalhista – o partido, no entanto, acabou adotando uma posição intermediária,
que previa “uma nova legislação trabalhista de extensa proteção
social” – e a revogação de pontos específicos da reforma de 2017.
Já eleito,
em março deste ano, Lula disse em evento com sindicalistas que queria
“estruturar um novo pacto na legislação do mundo do trabalho”.
A mesma
retórica é usada pelo ministro do Trabalho, Luiz Marinho (PT). Em meados de
abril, ele compareceu à Comissão de Trabalho da Câmara dos Deputados e disse
que a reforma tinha sido “uma tragédia” para o trabalho formal no
país.
O Ministério
do Trabalho criou uma comissão, formada por representantes de sindicatos e de
associações patronais, além do governo, para rever pontos da reforma
trabalhista. Mas, até o momento, porém, nada foi enviado ao Congresso.
O governo também pretende criar outra comissão com trabalhadores e empresas para debater a regulamentação do trabalho por meio de aplicativos.
Nesse caso,
porém, os nomes dos integrantes ainda não foram anunciados. Em um evento com
centrais sindicais em janeiro, Lula disse que era preciso “acabar com essa
história de que trabalhador por aplicativo é microempreendedor”.
Luiz Marinho
disse, por sua vez, que as jornadas dos aplicativos “beiram o trabalho
escravo”. Em entrevista ao jornal Valor Econômico, mencionou a possibilidade
de o governo usar os Correios para desenvolver um serviço para substituir a
Uber caso a empresa não concorde com a regulamentação do trabalho por
aplicativos e deixe o Brasil.
O ministro
foi procurado pela BBC News Brasil para comentar o assunto, mas não respondeu
até a publicação desta reportagem.
Ao longo de
2021 e 2022, os entregadores de comida promoveram mobilizações – inclusive
paralisando as atividades – no movimento que ficou conhecido como “Apagão
dos Apps”.
Melhorar o
valor pago pelas entregas, criar pontos de descanso entre as corridas e dar fim
aos bloqueios das contas são algumas das reivindicações dos entregadores.
O ministro
da Fazenda, Fernando Haddad (PT), chegou a discutir a possibilidade de criar
uma regra previdenciária mais favorável aos trabalhadores de aplicativos com o
presidente da Uber, Dara Khosrowshahi.
A conversa
aconteceu durante o Fórum Econômico Mundial em Davos, na Suíça, mas nada de
concreto foi apresentado até o momento.
Para o
advogado trabalhista Camilo Onoda Caldas, doutor em Direito pela USP, algum
tipo de regulamentação do trabalho por aplicativo é necessário – mesmo que não
nos moldes da CLT.
Segundo ele,
o surgimento nos últimos anos do termo “uberização” para se referir a
relações de trabalho precarizadas sugere que algo não vai bem.
“Não é
à toa. Quando temos um setor que degrada uma forma de trabalho, dizemos que
este setor está ‘uberizado’. Essa expressão se disseminou. Já é um sintoma de
que há algo errado”, diz Caldas, que é sócio do escritório Gomes, Almeida
e Caldas Advocacia.
Além de
garantir direitos básicos, diz Caldas, uma regulamentação do trabalho por
aplicativos deveria contemplar algum mecanismo de representação dos
trabalhadores e de negociação com as empresas – algo que não existe hoje.
Rafael
Ferreira diz que qualquer regulamentação que se faça dos aplicativos precisa
considerar a viabilidade do serviço.
“Essas
atividades, tipicamente, são exercidas por pessoas que ou não têm um emprego
formal ou se usam delas para complementar a renda do emprego. Se você insere
uma regulamentação que aumente o custo a ponto de inviabilizar a atividade, o
resultado pode ser uma queda na renda dessas pessoas”, diz o economista.
Ele
acrescenta que “se a regulamentação for feita de forma a aumentar os
ganhos dos trabalhadores, mas sem inviabilizar as empresas ou sem provocar uma
queda dos investimentos, não há como ser contra, é uma questão
distributiva”.
Origem
fascista?
Assim como o
“nascimento” da CLT em São Januário, outro mito em torno desta lei é que ela
seria uma cópia literal da Carta del Lavoro (“Carta do Trabalho”), um
documento do partido fascista italiano comandado pelo ditador Benito Mussolini
(1883-1945).
Na verdade,
a lei brasileira foi criada em um período em que as relações trabalhistas
estavam sendo regulamentadas em vários países, inclusive democracias.
Além disso,
buscava organizar o mercado de trabalho em um momento de rápida
industrialização e urbanização do país, segundo o historiador do trabalho Paulo
Fontes, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
“Eu não
diria que é uma cópia do modelo fascista, como ganhou ares de verdade. Eu
colocaria a CLT dentro desse conjunto de experiências que tentavam de alguma
forma regulamentar as relações de trabalho e sindicais”, diz Fontes.
“Há, como a
gente sabe, elementos autoritários na CLT. Alguns, provavelmente com inspiração
do corporativismo fascista italiano. Mas é um grande exagero dizer que a CLT é
uma cópia da Carta del Lavoro. Até porque são instrumentos legais
diferentes.”
Ele explica
ainda que a CLT surge como uma compilação de leis trabalhistas anteriores
criadas ao longo da década de 1930 pelo Estado Novo, o regime autoritário
comandado por Getúlio Vargas.
Por isso,
reúne tanto direitos sociais (férias, 13º salário) quanto regras consideradas
autoritárias sobre a atuação dos sindicatos. São da mesma época a própria
carteira de trabalho (1932) e a Justiça do Trabalho (1939).
“Ela é
elástica o suficiente para ter criado esse horizonte de direitos, ao mesmo
tempo em que tinha elementos repressivos. Se em períodos democráticos serviu
para garantir direitos, nos períodos ditatoriais os aspectos repressivos foram
mais utilizados (pelo Estado)”, diz Fontes, que comanda o Laboratório de
Estudos de História dos Mundos do Trabalho (LEHMT) da UFRJ.
A ligação da
CLT com o fascismo italiano foi frisada por diferentes grupos em diferentes
momentos, explica Fontes.
Durante a
ditadura militar, a associação era feita com frequência por sindicalistas – o
próprio Lula chegou a dizer, quando era sindicalista, que “a CLT é o AI-5
dos trabalhadores”, referindo-se ao Ato Institucional nº 5, que endureceu
a repressão durante o regime militar, conforme descreve Kazumi Munakata em
“A Legislação Trabalhista no Brasil”.
“Depois,
nos anos 1990, foram os neoliberais que começaram a dizer que a CLT tinha
inspiração na Carta del Lavoro. Mas aí muito mais em uma crítica geral aos
direitos sociais embutidos na CLT”, diz Fontes.
Os novos
desafios da economia digital
Passados 80
anos da criação da CLT, as plataformas digitais trazem novos desafios para a
legislação trabalhista.
Se antes o trabalho por meio de sites e aplicativos estava restrito a entregadores e motoristas, hoje é possível contratar todo tipo de serviço – inclusive psicólogos, designers, advogados.
A tendência,
segundo especialistas, é que a “uberização” avance sobre ainda mais
setores da economia. Em um ambiente como este, ainda haverá lugar para uma lei
como a CLT?
“Eu acredito
que a CLT ainda tem um lugar nas próximas décadas, no sentido de que ela dá
conta de alguns tipos de relação de trabalho que continuarão existindo por
muito tempo”, diz o advogado trabalhista Camilo Onoda Caldas.
“Vai
continuar existindo fábrica, vai continuar existindo comércio. Existem algumas
realidades em que a CLT manterá sua força. Só que nós estamos vendo o
surgimento de novos modelos de negócios em que a CLT não se encaixa
perfeitamente. E aí será preciso pensar em alguma outra norma.”
Rafael
Ferreira diz que a existência ou não da CLT – ou de uma lei similar – em
profissões “uberizadas” no futuro será uma decisão política e
jurídica.
Além da
remuneração dos profissionais, esse tipo de decisão afetará também a
disponibilidade dos serviços para os consumidores, avalia o economista.
“Tudo
depende de como será o entendimento jurídico da relação entre as plataformas da
chamada ‘gig economy’ [economia do bico, em tradução livre] e quem está
prestando o serviço”, diz Ferreira.
“Essas
plataformas permitem a entrada de mais trabalhadores. Se eu estou trabalhando
como psicólogo, por exemplo, em uma plataforma dessas, isso terá um efeito
inevitável sobre o preço, pois são mais psicólogos ofertando os serviços. Mesma
coisa com designers, até advogados.”
Segurança
Caldas diz
ainda que uma das mudanças mais importantes introduzidas pela CLT é reconhecer
a condição de inferioridade do trabalhador na hora de negociar com o patrão –
no Direito, essa assimetria de poder é chamada de “hipossuficiência”.
“A
realidade, em muitos casos, é a de que o empregado não tem essa liberdade para
negociar com o patrão. A relação de trabalho é assimétrica”, diz o advogado.
“Claro que
há exceções. Mas não é a realidade da maior parte dos trabalhadores. Por isso,
a CLT é um instrumento de proteção importante para o trabalhador.”
Mesmo com as
mudanças recentes, diz Caldas, a carteira assinada continua fornecendo mais
segurança ao empregado do que outras formas de contratação, como o trabalho
autônomo (a chamada “pejotização”).
Inclusive
porque a CLT tem mecanismos como o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço
(FGTS) e a contribuição previdenciária, que acabam criando uma reserva para o
futuro.
“É uma certa ingenuidade pensar que as pessoas farão esse tipo de reserva por conta própria em todos os casos. Quando o Estado estabelece essas formas de poupança compulsória, isso garante uma retribuição para quando a pessoa não tiver a mesma energia ou disposição”, diz o advogado.
“A
‘pejotização’ pode cobrar um alto preço, da pessoa e da sociedade, no futuro.”
Um dos
pontos em discussão no Brasil é, por exemplo, como garantir proteção
previdenciárias a trabalhadores sem carteira assinada. Leia nesta reportagem o
que dizem associações de trabalhadores e empresas.