Com retração da indústria, Brasil exporta mais para o Oriente Médio do que para Argentina
Com retração da indústria, Brasil exporta mais para o Oriente Médio do que para Argentina
Dinâmica é um retrato da perda de espaço de produtos manufaturados brasileiros no comércio global; país tem vendido cada vez mais commodities para o mundo.
Por BBC 23/01/2023 09h58 - Atualizado há 22 horas
No ano 2000,
59% do que o Brasil vendeu para o mundo foram produtos manufaturados pela
indústria. Em duas décadas, essa participação caiu a menos da metade – 28% em
2022, conforme os dados compilados pela Associação de Comércio Exterior do
Brasil (AEB).
Soja, milho,
petróleo, minério de ferro e carne responderam por cerca de metade de tudo o
que o Brasil embarcou para o mundo no ano passado.
A mudança de
perfil da pauta de exportações acabou mexendo com a lista dos principais destinos
de produtos brasileiros. Hoje, o Brasil vende mais para o Oriente Médio, por
exemplo, do que para a vizinha Argentina, destino da primeira visita oficial do
terceiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que desembarcou em
Buenos Aires neste 22 de janeiro.
A inversão é
reflexo do avanço das commodities nas relações comerciais do Brasil com a
comunidade internacional. Enquanto a Argentina é o principal destino dos bens
manufaturados produzidos pela indústria brasileira, especialmente a automotiva,
o Oriente Médio compra principalmente carnes de aves (17%), milho (16%),
minério de ferro (14%), soja (11%), açúcares e melaços (10%) e carne bovina
(5%).
O dólar e
a polêmica da moeda comum
Uma das
principais razões para a perda de espaço é a crise longa pela qual passa o país
vizinho, avalia José Augusto de Castro, presidente-executivo da AEB.
“A
Argentina tem um problema sério de falta de dólares”, diz ele,
referindo-se ao nível baixo de reservas cambiais, hoje em US$ 42,9 bilhões.
Para efeito de comparação, o Brasil, por exemplo, soma US$ 324,7 bilhões em
reservas internacionais.
Para evitar
a saída de dólares, o governo argentino com frequência impõe restrições às
importações, o que afeta diretamente seus principais parceiros comerciais.
Uma saída
para tentar aumentar o fluxo de comércio entre Brasil e Argentina seria
transacionar em uma moeda que não fosse o dólar – daí a ideia que circulou após
a reunião entre o embaixador argentino, Daniel Scioli, e o ministro da Fazenda,
Fernando Haddad, no dia 3 de janeiro em Brasília, e que acabou gerando ruído.
Ao sair do
encontro, Scioli falou sobre a possibilidade de criação de uma moeda comum para
o Mercosul. Dias depois, Haddad se irritou ao ser questionado por um jornalista
sobre a possibilidade de adoção de uma moeda única pelo bloco.
A ideia, de
fato, não seria criar uma moeda única (como o euro), mas uma moeda estrutural
que pudesse ser usada como mecanismo de compensação no comércio bilateral entre
os dois países, diz Welber Barral, especialista em comércio internacional e
sócio-fundador da consultoria BMJ.
Ele lembra
que o Brasil já conta com um Sistema de Pagamentos em Moeda Local, em que
Argentina e Uruguai podem pagar em suas respectivas moedas, mas é preciso fazer
uma compensação diária em dólares.
“Na
prática, [com esse sistema] persiste o problema das reservas cambiais.”
Para ele, a
moeda comum poderia ser um mecanismo para contornar o problema, mas
“haveria uma questão política a ser tratada com a Argentina sobre os
riscos de calote”. Castro, por sua vez, acha que a ideia é de difícil
implementação.
O
presidente argentino, Bolsonaro e Lula
A visita de
Lula será a primeira de um presidente brasileiro ao líder argentino Alberto
Fernández.
Jair
Bolsonaro (PL) viajou ao país em 2019, quando o rival de Fernández, Mauricio
Macri, ainda estava na Casa Rosada. Desde que a Frente de Todos – a coalizão de
partidos de esquerda peronistas e kirchneristas que ganhou as eleições –
assumiu o poder, ele não foi mais à região.
O primeiro
encontro entre os dois aconteceu em junho de 2022, na Cúpula das Américas em Los
Angeles.
Na visão de Barral, o distanciamento na relação bilateral nos anos de Bolsonaro não chegou a afetar de forma significativa a relação comercial entre Brasil e Argentina, que ele considera muito estável.
O
especialista aponta, contudo, que algumas das políticas da gestão passada
acabaram contribuindo para esfriar o fluxo de comércio entre os dois países,
entre eles a interrupção do programa de financiamento às exportações pelo Banco
Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Em sua avaliação, essa
era uma política que deveria ser retomada.
De forma
mais ampla, Barral afirma que o Brasil “ficou muito isolado
internacionalmente nos últimos anos” e que tem agora a oportunidade de
“retomar o protagonismo internacional, principalmente considerando os
vizinhos”.
“A
Argentina vai continuar a ser um vizinho importante e o Brasil tem que melhorar
o relacionamento com ela – então essa visita é importante.”
Os quadros
do peronismo argentino têm proximidade com o Partido dos Trabalhadores (PT). Na
noite em que Fernández venceu as eleições, em 27 de outubro de 2019, um grupo
grande de petistas participou das comemorações em Buenos Aires. Entre
militantes, integrantes da direção do partido, parlamentares e ex-parlamentares
estavam o ex-senador e agora deputado Lindbergh Farias e o atual presidente do
BNDES Aloizio Mercadante.
O próprio
presidente argentino é próximo de Lula. Ainda em campanha, em 2019, chegou a
visitá-lo na prisão em Curitiba.
Recorde
de exportações para o Oriente Médio
O aumento
dos embarques do Brasil para o Oriente Médio, por sua vez, é um retato da
primarização da pauta de exportações brasileira.
Nos últimos
anos, o país tem vendido cada vez mais produtos básicos, muitos com um nível
baixo de diferenciação.
Tamer
Mansour, secretário-geral da Câmara de Comércio Árabe-Brasileira, dá o exemplo
concreto do café: o Brasil vende especialmente o grão in natura para os países
árabes, quando poderia oferecer, por exemplo, café em pó, mais caro e com maior
valor agregado.
“Nós
temos os achocolatados, sucos, óleo de soja, de milho… no caso desses
produtos, infelizmente, a gente só exporta para os árabes as commodities”,
comenta.
Para além da
indústria alimentícia, ele diz, o Brasil teria o potencial para vender também
produtos farmacêuticos, cosméticos e relacionados à moda à região.
“Acho
que o Brasil precisa se destacar um pouco mais, precisa entender que essa
cúpula do mundo árabe, especialmente da parte do Golfo, tem como absorver
produtos de maior valor agregado de origem brasileira.”
Os US$ 17,2
bilhões que o Brasil embarcou para a região em 2022 são o maior valor da série
histórica da Secretaria de Comércio Exterior, que começa em 1997.
O primeiro destino foi o Irã. Milho e soja responderam por 80% dos US$ 4.3 bilhões vendidos ao país persa. Entre os árabes, os principais mercados foram os Emirados Árabes Unidos (US$ 3,3 bilhões), que têm se tornado um hub de distribuição de produtos para a Ásia Central, e a Arábia Saudita (US$ 2,9 bilhões).
Na avaliação
de Mansour, parte do aumento das exportações para os países árabes se deve à
valorização dos preços de commodities no ano passado e à Copa do Catar, que
contribuiu para elevar a demanda por produtos básicos.
A relação da
gestão Bolsonaro com os países da região teve um início turbulento com a
proposta, em 2019, de transferir a embaixada brasileira em Israel de Tel Aviv
para Jerusalém, cidade disputada por israelenses e palestinos. O governo recuou
da ideia e, com o tempo, passou a acenar mais aos países da região,
especialmente por meio do Ministério da Agricultura.
“Isso
nos causou um desconforto inicial. Eu acho que o governo – especialmente,
naquela época, a Tereza Cristina (ministra da Agricultura) – conseguiu muito bem
contornar a situação, absorver a importância do mundo árabe no agro
brasileiro.”
Sobre o
terceiro mandato de Lula, Mansour diz acreditar que a relação com a região deve
se estreitar e cita a visita do presidente ao Egito antes de sua posse, em
novembro, para participar da Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas (COP
27).
“Foi o presidente Lula que desenvolveu a Cúpula Aspa [Cúpula América do Sul – Países Árabes, inaugurada em 2005], então isso mostra como esse governo deve olhar com profundidade para os países árabes”, acrescenta.