Fome e desnutrição fazem aumentar o número de crianças com déficit de altura no Brasil
Fome e desnutrição fazem aumentar o número de crianças com déficit de altura no Brasil
Quantidade de menores de cinco anos atendidos pelo SUS considerados com altura extremamente baixa voltou a crescer nos últimos anos.
Por Amanda Lüder, GloboNews- 30/06/2023 11h46 - Atualizado há 2 horas
O número de crianças com menos de
cinco anos que têm déficit de altura voltou a crescer no Brasil nos últimos
anos.
Contexto: Enquanto em uma população saudável
é esperado que cerca de 1% das crianças tenha uma altura considerada muito
baixa, no Brasil, o número chegou a 5,3% em 2021.
Motivos: Fome e desnutrição estão entre as
razões que explicam esse cenário, agravado pela crise econômica e a pandemia.
Impacto: Quando expostas a esses problemas
durante a primeira infância, que compreende a fase dos 0 aos 6 anos, as
crianças raramente conseguem recuperar o déficit de altura.
Os dados são de um levantamento obtido
com exclusividade pela Globonews, feito pelo Laboratório de Avaliação do Estado
Nutricional de Populações da Faculdade de Saúde Pública da USP (Lanpop USP) a
partir de informações do Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional do
Ministério da Saúde.
O crescimento das crianças atua como
um marcador indireto da saúde da população, relacionado a aspectos sociais. A
estatura de um indivíduo é definida por heranças genéticas, mas também por
fatores de saúde.
Todo o ambiente favorece ou trava o
crescimento. Uma criança com altura muito baixa pode ter tido doenças
recorrentes, uma alimentação insuficiente, períodos de fome.
— Wolney Conde, coordenador do Lanpop
USP e um dos responsáveis pela pesquisa
Crianças com déficit de altura podem
ter:
– malterações no desenvolvimento
cognitivo;
– maior tendência a desenvolver
doenças crônicas; e
– maior probabilidade de contrair
infecções.
“A estatura vem acompanhada de
uma tempestade de problemas específicos. A população com baixa estatura tem
maior chance de contrair esses problemas”, explica o pediatra e nutrólogo
Mauro Fisberg.
Piora no cenário
Há pelo menos 15 anos, a frequência de
altura muito baixa estava caindo entre as crianças, mas a pesquisa do Lanpop
USP mostra que, a partir de 2019, o índice começou a subir.
Apesar do aumento não ser tão
significativo, o que chama atenção dos pesquisadores é a reversão da tendência
de queda, uma vez que ela já ocorria há mais de uma década.
Os dados dizem respeito somente a crianças
que passaram pela Atenção Primária à Saúde, no Sistema Único de Saúde.
Segundo o pesquisador do laboratório
da USP, há dificuldade no registro desses índices no sistema — nem todos os
atendimentos são lançados.
“Ainda não sabemos a capacidade desses
números representarem a totalidade da população atendida no SUS, mas, assumindo
a tendência de alta, a prevalência está acima do esperado”, afirma Conde.
Há cerca de quatro décadas, o Brasil
chegou a ter prevalência de 25% da população com a frequência de estatura muito
baixa.
“A média latinoamericana é de 14%.
Então, estamos dentro de uma situação não tão ruim, mas uma situação muito
longe da dos países mais desenvolvidos”, explica o pediatra Fisberg, que também
é coordenador do Centro de Nutrição e Dificuldades Alimentares do Instituto
PENSI.
A pesquisa da USP também apontou que,
quanto maior a renda média do município, menor a quantidade de crianças com
déficit de altura. Mesmo assim, em todos os municípios se observou a tendência
de aumento desse problema nos últimos anos.
A recessão a partir de 2015 e a pandemia são fatores que podem ter provocado o aumento na pobreza e na desnutrição, de acordo com o diretor do Centro de Pesquisa Aplicada à Primeira Infância (CPAPI) do Insper, Naércio Menezes Filho.
“Foi um baque especialmente para
os mais pobres que trabalhavam no setor informal e perderam suas fontes de
renda”, explica.
É o caso de Valci Souza Figueiredo, de
51 anos, moradora de Cotia, município localizado na Grande São Paulo. Ela e o
marido moram com três netos, com idades entre 2 e 15 anos. Há alguns meses, os
dois estão desempregados.
Na maior parte dos dias, as únicas refeições da família são o almoço e o jantar. (Veja no vídeo mais abaixo.)
O café da manhã eu nem falo pra você
que tem, porque não tem mesmo.
— Valci Souza Figueiredo, de 51 anos,
moradora de Cotia
Ela afirma que consegue adicionar
carne ou frango nas refeições apenas em dois dias do mês, assim que recebe o
benefício do Bolsa Família. Nos outros dias, as refeições consistem somente em
arroz e feijão.
O neto mais novo, Gael, de 2 anos, faz
acompanhamento pediátrico. “A última vez que eu levei ele, o médico falou
para mim que ele estava com peso baixo”, diz Valci.
“Se dá certos tipos de fruta para
ele, ele não sabe nem que fruta é. Aqui dentro de casa não entra, porque não
tem dinheiro para comprar.”
Recuperação difícil
Quando expostas a esses problemas
durante a primeira infância, que compreende a fase dos 0 aos 6 anos, as
crianças raramente conseguem recuperar o déficit de altura.
Isso só é possível por meio de
intervenções clínicas — que não são viáveis e nem adequadas de serem feitas em
larga escala.
Os especialistas ouvidos pela
reportagem concordam que, para mitigar o problema da desnutrição na primeira
infância, as políticas públicas associadas à atenção básica precisam ser
fortalecidas.
Em março deste ano, o Bolsa Família
foi recriado e passou a contar com um adicional de R$ 150 por criança de 0 a 6
anos.
“Nos últimos anos os problemas foram
se avolumando no Brasil. Muitas políticas públicas foram desmontadas no governo
anterior”, afirma o economista Menezes Filho.
“A partir do momento em que essas
políticas começaram a ser abandonadas parcialmente, um movimento de
desinvestimento, o quadro nutricional infantil começa a mostrar esse efeito”, diz
Conde, pesquisador da USP.
Segundo o pediatra Fisberg, a estatura é a medida menos realizada nos serviços de saúde.
“Sem isso, eu deixo de ter uma medida
adequada para investigar e investir de forma correta. Temos que voltar a
investir que não só se pese, mas se meça”, afirma.
De acordo com o especialista, é
essencial acompanhar a estatura das crianças permite que o sistema de saúde
faça a detecção de um diagnóstico precoce individual.
“E [é preciso] informar isso para os sistemas de análise de dados de forma contínua para que se possa intervir nas pequenas variações, e não esperar que exista um grande número da população que esteja com um problema que já é muito difícil de trabalhar”, afirma o médico.