Por que há desconfiança do mercado financeiro em relação a Lula?
Por que há desconfiança do mercado financeiro em relação a Lula?
O sobe e desce nos preços de ativos brasileiros nos dois meses de transição levou muita gente a se perguntar se o mercado financeiro exagera no pessimismo com Lula.
Por BBC - 03/01/2023 06h05 Atualizado há 3 horas
No dia 10 de novembro, em sua primeira
visita à sede da transição de governo, Luiz Inácio Lula da Silva falou pela
primeira vez sobre a condução da economia em seu terceiro mandato.
De forma vaga, ele criticou a ideia de
disciplina fiscal: “Por que as pessoas são obrigadas a sofrer para
garantir a tal da responsabilidade fiscal deste país? Por que toda hora falam
que é preciso cortar gastos, é preciso fazer superávit, é preciso cumprir teto
de gastos?”.
“Vamos mudar alguns conceitos,
muitas coisas consideradas como gasto temos que passar a considerar
investimento”, concluiu.
Foi o suficiente para derrubar a bolsa
e fazer o dólar subir. Depois de cair para algo próximo de R$ 5 após o segundo
turno, a moeda americana registrou alta de 4,1% naquele dia, cotada a R$ 5,39.
Uma semana depois, na Conferência do
Clima da ONU, Lula falou sobre a reação com um comentário que mais uma vez
desagradou o mercado: “Você tenta desmontar tudo aquilo que faz parte do
social e não tira um centavo do sistema financeiro. Se eu falar isso, vai cair
a bolsa, o dólar vai aumentar? Paciência”.
No primeiro dia útil de 2023, os primeiros anúncios do novo governo também foram mal recebidos. Na segunda (2/1), o Ibovespa, principal índice da bolsa brasileira, fechou em queda de 3% e o dólar bateu R$ 5,35, com alta de 1,5%.
O sobe e desce nos preços de ativos
brasileiros nos dois meses de transição levou muita gente a se perguntar se o
mercado financeiro exagera no pessimismo com Lula — especialmente porque o
antecessor, Jair Bolsonaro, furou o teto de gastos em R$ 795 bilhões no
decorrer dos últimos quatro anos.
A resposta — que não se limita a um
simples sim ou não — passa pela discussão sobre as engrenagens que movimentam o
mercado financeiro e pela maneira como são construídas as expectativas que
norteiam os investidores.
O que move o
mercado
De forma geral, a agenda do mercado
financeiro costuma estar alinhada com a de políticos de centro e de direita:
maior controle sobre o gasto público e menor participação do Estado na
economia.
Mas não são as ideologias o substrato
por trás das decisões que formam os preços, diz Filipe Campante, Bloomberg
Distinguished Associate Professor na Universidade Johns Hopkins, nos Estados
Unidos.
“Um mercado com tamanho e volume
como o de títulos da dívida, de câmbio, é uma agregação de inúmeras decisões
que estão sendo tomadas basicamente com o intuito de ganhar dinheiro. Todos
esses indivíduos têm seus vieses, seus interesses, mas, individualmente, eles
não estão formando preço.”
A ideia é que, sozinhos, os
investidores não conseguem mover o dólar para cima ou para baixo, por exemplo.
Assim, o principal motor por trás de suas decisões é essencialmente obter o
máximo possível de retorno dentro de um determinado perfil de risco.
Formação das
expectativas
A questão é que muitas dessas decisões
estão baseadas em expectativas, que se constroem, por sua vez, sobre previsões
para o futuro (sobre o cenário internacional, o preço de commodities, a
inflação, o PIB…) que levam em consideração uma miríade de fatores — e que
podem, no fim das contas, estar erradas ou certas.
Nesse sentido, Robin Brooks,
economista-chefe do Instituto de Finanças Internacionais (IIF, na sigla em
inglês), acredita que os brasileiros são sistematicamente mais pessimistas do
que a média dos agentes econômicos.
“Quando conversamos com clientes
e investidores brasileiros, metade do tempo eles costumam ser muito negativos —
e estão mais ainda agora”, disse ele, que falou à BBC News Brasil poucos
dias antes da posse.
No caso específico de Lula, a ideia geral é de que o cenário em que o ex-presidente inicia o terceiro mandato é bastante diferente do que ele encontrou em 2003: em vez do boom de commodities que permitiu a expansão do gasto social, em 2023 o mundo caminha para uma recessão com inflação alta e preços elevados de combustíveis. Se Lula tentar seguir o mesmo roteiro do passado, a dívida pública pode sair do controle, com consequências desastrosas para a economia.
“Eu consigo entender porque as
pessoas se preocupam com isso, mas [para chegar nesse ponto] é preciso
extrapolar para frente a tomada de muitas decisões equivocadas”, comenta.
Ele acrescenta que o nível da dívida
pública brasileira, na casa dos 75% do Produto Interno Bruto (PIB), é maior do
que o observado entre mercados emergentes, mas ainda bastante inferior ao de
economias do G10 como o Reino Unido, por exemplo, que chegou a 100% do PIB
neste ano.
“Acho que o Brasil tem, sim,
algum espaço fiscal. O cenário para as contas externas é favorável. Então a
pergunta é o quanto um novo governo Lula vai explorar isso — e se vai acabar
indo longe demais.”
Parte dos analistas, contudo, não acha
que o Brasil disponha de espaço fiscal para crescer os gastos, e viram na
nomeação de Fernando Haddad para o Ministério da Fazenda e de Aloizio
Mercadante para o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES)
— duas indicações políticas, e não técnicas — uma sinalização de que o foco do
governo não será diminuir ou melhorar a qualidade do gasto público.
Em um relatório recente, o economista
Marcos Casarin, da Oxford Economics, avalia que os sinais enviados por Lula
indicam uma reversão da política econômica atual, com flexibilização do teto de
gastos e perda de autonomia de bancos e empresas estatais.
Ele cita, nesse sentido, a mudança a
toque de caixa da Lei das Estatais, que reduziu de três anos para 30 dias o
período de quarentena para que políticos e dirigentes partidários possam ocupar
cargos em estatais e agências reguladoras — algo que, na prática, abriu espaço
para indicações políticas nessas organizações.
O novo cenário o levou a reduzir para
zero a projeção para o PIB do Brasil no próximo ano. Para efeito de comparação,
o IIF estima crescimento de 1,8% para o mesmo indicador — a diferença ilustra
um pouco como as expectativas calibram a formação das estimativas para os
indicadores econômicos.
E Bolsonaro?
Sobre a postura do mercado em relação
ao antecessor de Lula, Jair Bolsonaro, Brooks avalia que os investidores
brasileiros reagiram, sim, à deterioração do cenário fiscal sob o agora
ex-presidente, um pessimismo que se manifestou na trajetória de aumento do
dólar, por exemplo.
“Em 2021, eram os investidores
brasileiros que estavam vendendo [suas posições] mais intensamente — não eram
os estrangeiros. Lembra quando o dólar quase bateu R$ 6? Isso foi reflexo de um
movimento de venda por parte dos brasileiros, fruto de um pessimismo em relação
à pandemia e à forma como o combate a ela estava sendo conduzido.”
O economista-chefe para mercados
emergentes da Capital Economics, William Jackson, cita o mesmo período quando
questionado pela reportagem sobre uma possível condescendência dos mercados em
relação ao ex-presidente.
“Junho, julho de 2021, a
percepção sobre Bolsonaro nos mercados certamente piorou.”
Ele compara o cenário daquele momento
com o de 2019, quando Bolsonaro assumiu e, alguns meses depois, o Brasil
aprovou a Reforma da Previdência que tinha começado a tramitar no governo de
Michel Temer.
“As perspectivas eram positivas,
havia uma agenda que abordava alguns dos principais problemas do país, com
reformas — mas a pandemia mudou tudo.”
“Nem lembro quantas vezes pensei
que a reforma tributária e administrativa seriam finalmente pautadas…”
Na visão do economista, o pacote de
enfrentamento à pandemia, mais especificamente o programa Renda Brasil (que
depois se tornaria Auxílio Brasil), mostrou a Bolsonaro que ele poderia tentar
aumentar sua popularidade turbinando o gasto público, e que havia caminhos para
contornar o teto de gastos que limitava as despesas do governo.
“Acho que na segunda metade de
2021 a gente pode observar uma reação bastante ruim do mercado financeiro
brasileiro a essas políticas.”
Nesse sentido, Filipe Campante avalia
que a reação talvez não tenha sido pior porque houve uma interpretação de que o
aumento dos gastos sociais era uma medida “claramente eleitoreira”.
Na hora em que fosse preciso cortar,
ele acrescenta, a gestão Paulo Guedes “sairia cortando tudo
radicalmente”, como fez em outros momentos — o que, se não é algo
sustentável do ponto de vista da gestão de políticas públicas, segura o aumento
da dívida pública e agrada os investidores.
Para Campante, ainda que as
movimentações do mercado se baseiem em premissas que não necessariamente
estejam corretas, é importante prestar atenção às informações contidas no sobe
e desce de preços porque, no fim do dia, tudo isso acaba tendo desdobramentos
na economia real.
“Se o dólar sobe, ele vai ter
impacto na inflação… Os preços afetam o ambiente no qual o governo toma
decisões.”
A nova equipe
econômica
Martín Castellano, economista-chefe
para América Latina do IIF, afirma que os anúncios sobre a equipe econômica que
passa a compor o novo governo e os eventos dos últimos dias antes da posse
trouxeram “boas e más notícias”.
A indicação de Haddad e Mercadante
frustrou as expectativas daqueles que esperavam nomes técnicos para o primeiro
escalão.
Por outro lado, figuras menos ligadas
à política e mais ao mercado começam a aparecer em outras posições. O número
dois de Haddad, por exemplo, é Gabriel Galípolo, que presidia o banco Fator e
agora assume a secretaria-executiva do Ministério da Fazenda. Marcos Barbosa
Pinto, por sua vez, que estará à frente da Secretaria de Reformas, foi sócio de
Armínio Fraga na Gávea Investimentos.
Também entre os sinais positivos,
Castellano cita o possível contraponto do Congresso ao Executivo, como já
aconteceu na tramitação da PEC da Transição: após passar pelo Senado e pela
Câmara, o valor para ampliação do teto de gastos caiu de R$ 198 bilhões (a
proposta inicial do governo) para R$ 145 bilhões. A duração também foi
reduzida, de quatro anos para um ano.
William Jackson, da Capital Economics,
também avalia que o Congresso pode acabar moderando algumas das propostas do
Executivo e, por consequência, desacelerar o ritmo de aumento de gastos.
Entre os possíveis pontos positivos da
nova gestão, ele coloca a política ambiental e de relações exteriores, que
podem trazer benefícios ao Brasil.
Em sua visão, a demora do então
presidente eleito para anunciar um ministro da Fazenda, o que só ocorreu em 9
de dezembro, e a ausência de informações mais concretas sobre a política
econômica durante a transição deixaram os investidores sem uma âncora para suas
expectativas. Isso pode ter contribuído para a volatilidade dos preços
observada nos mercados nos últimos dois meses, diz ele.
“Acho que aquela ideia de que
Lula seria mais pragmático que circulou nos primeiros dias após a vitória pode
ter sido exagerada”, acrescenta.
Para o economista, o primeiro governo
Lula teve esse perfil em grande medida porque as condições financeiras na época
permitiram — um cenário que não se repete hoje.
Além disso, ele complementa, em 2003
Lula teve de convergir mais para o centro para conter os efeitos negativos que
as incertezas sobre seu governo poderiam gerar. Com a alta significativa do
dólar durante a disputa eleitoral, ele decidiu agir rápido para comunicar que a
intenção não era implodir o modelo econômico que tinha vigorado no país até
então, mas reformá-lo.
Robin Brooks, que é conhecido pelas
estimativas geralmente mais otimistas que a média sobre o Brasil, recomenda ao
governo eleito observar em alguma medida o que pedem os mercados, com um pouco
de “ortodoxia”, e os frutos virão com aumento dos fluxos de capital
que vão melhorar as condições financeiras e permitir que o país cresça mais.
“Eu sou um pouco filosófico sobre
essas negociações fiscais…é um governo novo, que quer deixar sua marca, mas
continuo esperançoso. No fim, um grande tema que eu acho que os mercados
passaram a focar neste ano foi a democracia. E estamos tendo uma transição
pacífica de governo, depois de uma eleição bem apertada. Isso é
fundamentalmente positivo.”
Entre as declarações e ações do novo
governo que repercutiram de forma negativa nos últimos dias estão a menção de
Lula ao teto de gastos em seu discurso de posse — o presidente chamou o
mecanismo de “estupidez” e disse que ele seria revogado — e o anúncio
na segunda (2/1) de que a isenção de impostos federais sobre os combustíveis
seria prorrogada. Também foi mal recebida a determinação do novo presidente de
revogar os processos de privatização de oito estatais, entre elas os Correios.
Este texto foi publicado em
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-64072279