Quem são as centenas de milhares de russos que estão deixando a Rússia e para onde estão indo
Quem são as centenas de milhares de russos que estão deixando a Rússia e para onde estão indo
Estima-se que centenas de milhares de cidadãos russos tenham deixado o país desde o início da invasão da Ucrânia pela Rússia.
Svetlana é uma dessas pessoas. Ela tem
pouco mais de 30 anos e morava em uma cidade pequena até mudar-se para Moscou,
aos 18 anos, para estudar física na universidade.
Depois de formada, Svetlana trabalhou
como gerente de produtos em diversas empresas.
“Nunca pensei que precisaria sair
[do país], meus planos eram de me aposentar em Moscou”, conta. “Eu
amo a Rússia e gostava da minha vida.”
Cidadãos russos já vinham deixando o
país desde antes da guerra na Ucrânia. Entre eles, estavam as pessoas que
discordaram da anexação da Crimeia pela Rússia em 2014 e das novas leis que facilitaram
a punição dos dissidentes.
Muitas dessas pessoas se estabeleceram
em nações bálticas (Estônia, Letônia e Lituânia) e em outros países da União
Europeia, além da Geórgia.
Para Svetlana, a invasão da Ucrânia em
2022 foi o momento decisivo.
“Quando a guerra começou, percebi
que não acabaria tão cedo e também que as pessoas não iriam sair para
protestar”, diz. “Percebi, racional e emocionalmente, que fazia
sentido sair.”
Svetlana agora mora na capital da Sérvia, Belgrado. “Eu quis ficar ao máximo de distância possível das autoridades.”
Muitos cidadãos russos tiveram o mesmo sentimento que Svetlana e o que antes era a exceção passou a ser um fluxo contínuo.
A primeira onda veio em março e abril
do ano passado. Os novos emigrados contaram à BBC que eram contra a guerra e
estavam desapontados porque poucos cidadãos russos saíram para protestar.
Sentindo-se isolados e em situação de
risco, eles perceberam que era mais seguro sair do país.
O presidente russo Vladimir Putin
começou uma mobilização militar em setembro de 2022. Descrita como “parcial”
pelas autoridades, na verdade, ela aumentava a quantidade de homens em risco de
serem convocados.
Seguiram-se diversos relatos de mau
treinamento e equipamento insuficiente para os recém-alistados. Os homens e
suas famílias começaram a sair do país em massa, criando filas com dias de
espera nas fronteiras da Rússia com a Geórgia e o Cazaquistão.
O porta-voz oficial do presidente
russo, Dmitry Peskov, negou que cidadãos russos estivessem saindo em massa do
país para evitar que fossem convocados para a guerra.
Em abril, as autoridades russas
introduziram a “convocação online”, que permitia que novos convocados
pudessem ser acrescentados a um registro digital em vez de receberem os papéis
pessoalmente.
Peskov também negou que o novo sistema
fosse projetado para impedir o fluxo de homens que saíam do país.
Quantos saíram e
para onde foram?
Não existem números exatos de quantas
pessoas saíram da Rússia. Mas as estimativas variam de centenas de milhares até
vários milhões.
Em maio, o Ministério da Defesa do
Reino Unido estimou que 1,3 milhão de pessoas deixaram a Rússia em 2022. Outras
estimativas, de diversas fontes, confirmam esta tendência.
Citando fontes internas entre as
autoridades russas, a revista Forbes afirmou que 600 mil a um milhão de pessoas
saíram da Rússia em 2022. E dois órgãos de imprensa independentes da Rússia,
Bell e RTVi, publicaram números similares.
Sair da Rússia é relativamente fácil,
desde que você tenha dinheiro e não tenha sido convocado pelo exército. O
difícil é encontrar um lugar permanente para ficar.
Nos meses que se seguiram ao início da
guerra, muitos países, principalmente da União Europeia e os Estados Unidos,
dificultaram os pedidos de visto de cidadãos russos, a menos que eles já
tivessem família no país ou estivessem viajando a trabalho.
Em muitos outros lugares, como a Geórgia e a Armênia, os russos não enfrentaram restrições e podem, até hoje, entrar e sair conforme desejarem.
Já outros países, incluindo o
Cazaquistão, mudaram sua legislação no início deste ano, supostamente para
reprimir o fluxo de imigrantes russos, reduzindo a quantidade de dias em que
eles podem permanecer como turistas.
Sem perspectiva de voltar para a
Rússia, cada vez mais pessoas precisam solicitar residência para poder
trabalhar nos países onde estão se estabelecendo. Muitos podem estar
encontrando formas de continuar trabalhando remotamente para seus empregadores
russos.
Sabemos que, nos últimos 15 meses,
cerca de 155 mil cidadãos russos receberam autorização de residência temporária
nos países da União Europeia e em diversas nações dos Bálcãs, do Cáucaso e da
Ásia Central.
Cerca de 17 mil russos pediram asilo
político na União Europeia, mas apenas cerca de 2 mil pedidos foram aprovados,
segundo a Agência de Asilo da UE. Já o Ministério do Interior da Rússia afirma
que houve um aumento de 40% nos pedidos de passaportes estrangeiros em 2022, em
relação ao ano anterior.
‘Fiquei
apavorado’
Desde o início da guerra, conversamos
com dezenas de cidadãos russos que saíram do país.
Eles têm diversas profissões. Alguns
são jornalistas como nós, enquanto outros são especialistas em TI, designers,
artistas, acadêmicos, advogados, médicos, relações públicas e linguistas.
A maior parte deles tem menos de 50
anos. Muitos compartilham as visões liberais do Ocidente e esperam que, um dia,
a Rússia seja um país democrático. Alguns são da comunidade LGBTQ+.
Sociólogos que estudam a atual
emigração russa afirmam que existem evidências de que as pessoas que estão
saindo do país são mais jovens, têm melhor formação e são mais ricas que as que
permanecem na Rússia. A maioria vem de cidades grandes.
Thomas, por exemplo, é de São
Petersburgo.
“Sou pacifista e fiquei apavorado
por poder ser mandado para matar outras pessoas”, ele conta. “Sou
contra a política russa em relação à Ucrânia desde 2014. A invasão e a morte de
civis são inaceitáveis.”
Thomas conta que, depois do início da
invasão, postou mensagens contra a guerra nas redes sociais e participou dos
protestos nas ruas. Como homem gay, ele passou a se preocupar com a sua
segurança.
“Quando a Rússia adotou leis
sobre a ‘proibição da propaganda gay’ e sobre ‘fake news’ sobre o exército
russo, eu soube que a ameaça à minha vida e liberdade aumentou”, ele
conta.
Thomas pediu asilo político na Suécia e tentou explicar para as autoridades do país os perigos envolvidos no seu eventual retorno para a Rússia. Seu pedido foi negado, mas ele recorreu contra a decisão.
“Como tenho apenas direito a
tempo limitado com um defensor público, estou trabalhando sozinho para reunir
evidências em minha defesa”, ele conta.
Já Sergei, da cidade de Rostov-on-Don,
no sul da Rússia (a 120 km da fronteira com a Ucrânia), enfrenta um conjunto
diferente de problemas.
Ele está agora na capital da Geórgia,
Tbilisi. No dia em que a Rússia invadiu a Ucrânia, ele telefonou para vários
dos seus amigos e todos eles concordaram que a guerra era uma má notícia.
“Independente do que acontecesse
em seguida, a economia iria despencar”, segundo ele. “Uma semana depois,
todos nós nos reunimos e decidimos que precisávamos nos preparar [para deixar o
país].”
Sergei conta que, à medida que os dias
passavam, a guerra chegava mais perto.
“Vimos muito material militar a
caminho da Ucrânia”, ele conta. “Os hospitais estavam cheios de
feridos. O aeroporto de Rostov estava fechado para voos civis, mas havia muitos
aviões e sabíamos para onde eles estavam indo.”
Em setembro, depois do discurso de
mobilização de Putin, a mãe de Sergei – que o havia criticado pela sua falta de
patriotismo – telefonou para ele e disse: “faça suas malas e vá”. Ele
então dirigiu a noite toda até a Geórgia, onde mora atualmente.
“Minha esposa e filho ainda estão
na Rússia”, ele conta. “Preciso pagar suas despesas e acomodação lá e
as minhas, aqui. Trabalho em dois empregos – um deles, remoto, para minha
empresa na Rússia e outro aqui, no pequeno negócio de um amigo.”
Sergei afirma que está economizando
dinheiro para retirar sua família da Rússia rumo a outro país. Ele conta que
sua esposa estava relutante, mas agora concorda que eles precisam procurar uma
vida nova em outro lugar.
O que isso
significa para a Rússia?
As autoridades russas tentaram
minimizar o impacto das centenas de milhares de pessoas formadas e bem de vida
que estão saindo do país com seu dinheiro, mas as consequências econômicas são
evidentes.
O Alfa Bank, maior banco privado da
Rússia, estima que 1,5% de toda a mão de obra pode ter deixado o país. Como a
maior parte das pessoas que saíram é de profissionais altamente especializados,
as empresas se queixam de falta de pessoal e dificuldades de contratação.
O Banco Central da Rússia informou,
nos primeiros estágios da guerra, que os cidadãos russos retiraram um recorde
de 1,2 trilhão de rublos (cerca de US$ 15 bilhões ou R$ 74 bilhões) das suas
contas. É uma escala que não era vista na Rússia desde a crise financeira de
2008.
O economista Sergei Smirnov, da
Academia Nacional de Ciências da Rússia, acredita que a tendência geral é que
os indivíduos altamente especializados continuem procurando formas de sair do
país.
“Haverá cada vez mais demanda por pessoas que saibam consertar carros ou fazer sapatos”, afirma ele. “Não gosto de cenários apocalípticos, mas acredito que isso irá fazer com que a produtividade da economia russa continue a cair ao longo do tempo.”
O economista destaca que estas
tendências irão afetar principalmente as cidades grandes, como Moscou, São
Petersburgo e Ecaterimburgo.
“A maior parte do território
russo não irá conhecer essas transformações porque os padrões de vida das
cidades, vilas e aldeias menores sempre foram baixos e continuarão a ser no
futuro”, explica Smirnov.
Svetlana, em Belgrado, não tem planos
de voltar para a Rússia. “Estou trabalhando em uma startup com sede na
Moldova, mas recentemente me candidatei a um emprego na Holanda.”
Em Tbilisi, Sergei está se
candidatando a empregos na Europa. Atualmente, sua vida é difícil. “Não
tenho dias de folga”, ele conta. “Às vezes, não tenho tempo
suficiente para uma noite de sono e tiro uma soneca no carro.”
Thomas, na Suécia, espera não ser
obrigado a voltar para a Rússia, onde ele receia sofrer abusos homofóbicos. Ele
está aprendendo sueco para poder conseguir um emprego.
Edição de Kateryna Khinkulova.
